Os consumidores de energia solar do Estado de Mato Grosso foram pegos literalmente de surpresa no mês de abril do corrente ano ao se depararem com uma novidade nada agradável na conta de energia, a tão famosa taxação do Sol. Isso foi um passo na contra mão das políticas relacionadas com o assunto.
Com efeito, com o advento da Resolução Normativa n.º 482[1] da ANEEL, tivemos a possibilidade de produzir a nossa própria energia por meio de sistemas de energia solar e, posteriormente, com a RN n.º 687[2], novos incentivos para o setor foram alcançados e hoje podemos produzir energia para condomínios, residências, indústrias, comércios e para o agronegócio.
Políticas públicas de incentivos ao setor foram criadas, como a resolução Confaz 16/2015[3], a Lei Complementar Estadual 631/2019[4], além do apoio para financiamento por meio de diversas instituições financeiras. Afinal, estamos falando de uma energia limpa, renovável, environmental friendly e muito abundante no nosso país.
Ademais, segundo dados da ABSOLAR, o setor de energia solar fotovoltaica irá criar 672 mil novos empregos até 2035[5], o que significa renda, qualidade de vida, impostos municipais, estaduais e federais e avanço para o país. Então por que “taxar o Sol”?
Considerando-se que, levando em conta os avanços e as prospecções citadas acima, seria uma pergunta até fora de contexto, e talvez incabível, mas ocorre! E no Estado de Mato Grosso a novidade desagradável no mês de abril foi a incidência de ICMS da TUSD.
ICMS, TUSD E TUST
Antes de adentrarmos nas teses e questões jurídicas é imperioso elucidar a respeito do que consiste o ICMS, a TUSD e a TUST.
ICMS
O ICMS – Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – é um tributo de competência dos Estados, disposto no artigo 155, II, da Constituição Federal[6].
TUSD e TUST
A TUSD e a TUST são conhecidas como Tarifas de fio, ambas estabelecidas pela ANEEL e pagas pelos consumidores, sejam eles produtores ou não de energia, leia-se: todos pagam. O pagamento ocorre simplesmente pelo fato de utilizarmos as linhas de transmissão ou distribuição e estão compostos dentro da nossa tarifa mínima de demanda.
A tarifa TUSD é um encargo devido pelas empresas de geração, comercialização e pelos consumidores livres e cativos que se conectam à rede de distribuição dentro da área de concessão da concessionária distribuidora, no caso em Mato Grosso, a Energisa. Essa tarifa visa cobrir os custos decorrentes da atividade de prestação de serviço de distribuição quando não houver o fornecimento de energia elétrica ao consumidor pela empresa distribuidora de energia.
Já a TUST é um encargo pago por todas as empresas de geração e distribuição bem como consumidores livres que se conectam à rede, ela visa cobrir os custos decorrentes da atividade de transmissão.
Quando Pagamos o ICMS?
Importante destacarmos também que a energia elétrica configura uma mercadoria intangível, uma operação mercantil e por essa razão, todos nós pagamos ICMS na conta de energia, porque fazemos o uso da energia.
Entretanto, as operações de consumo de energia elétrica possuem as suas peculiaridades. No momento em que a energia elétrica sai do estabelecimento das distribuidoras fornecedoras para a nossa residência, comércio, indústria e é efetivamente consumida, temos ai uma prestação de serviço, uma operação mercantil e um lucro mensurável, logo, temos o fato gerador do ICMS configurado.
Mas e nas operações anteriores? A cadeia elétrica brasileira é composta também pelas geradoras e transmissoras antes de chegar até as distribuidoras de onde obtemos a energia como consumidores.
Nesse caso inexiste previsão legal para a incidência de ICMS para o serviço de transporte de energia, conforme abaixo:
TRIBUTÁRIO. ICMS. DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. “SERVIÇO DE TRANSPORTE DE MERCADORIA”. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. CIRCULAÇÃO DE MERCADORIA NA TRANSMISSÃO DA ENERGIA ELÉTRICA. NÃO OCORRÊNCIA. SÚMULA 166/STJ. PRECEDENTES. SÚMULA 83/STJ.
1. Inexiste previsão legal para incidência de ICMS sobre o serviço de “transporte de energia elétrica”, denominado no Estado de Minas Gerais de TUST (Taxa de Uso do Sistema de Transmissão de Energia Elétrica) e TUSD (Taxa de Uso do Sistema de Distribuição de Energia Elétrica).
2. “Embora equiparadas às operações mercantis, as operações de consumo de energia elétrica têm suas peculiar idades, razão pela qual o fato gerador do ICMS ocorre apenas no momento em que a energia elétrica sai do estabelecimento do fornecedor, sendo efetivamente consumida. Não se cogita acerca de tributação das operações anteriores, quais sejam, as de produção e distribuição da energia, porquanto estas representam meios necessários à prestação desse serviço público” (AgRg no Resp 797.826/MT, Re l. Min Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 3.5.2007, DJ 21.6.2007, p.283).
3. O ICMS sobre energia elétrica tem como fato gerador a circulação da “mercadoria” e não do “serviço de transporte” de transmissão e distribuição de energia elétrica. Assim sendo, no “transporte de energia elétrica” incide a Súmula 166/STJ, que determina não constituir “fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”. (STJ – AgRg no Re sp 1135984 MG 2009/0073360-1, Rel. Min HUMBERTO MARTINS, Segunda Turma, jul gado em 8.2.2011, DJ 4.3.2011).
Quando Não Pagamos o ICMS?
No mesmo sentido corrobora também a súmula 166 do Superior Tribunal de Justiça: “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.
Nesse contexto podemos extrair as seguintes conclusões: que geração e transmissão de energia são enquadradas como prestação de serviço público e também que, quando não há transferência ou troca de titularidade não há configuração de ICMS.
Com efeito, as concessionárias utilizam as operações anteriores como meio para a efetiva prestação de serviço e ao promoverem a saída de energia elétrica do seu estabelecimento com destino ao consumidor, assumem aqui a posição de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme previsto no artigo 121, parágrafo único do CTN, logo, assumem a condição de contribuintes.
Tendo em vista que para incidir ICMS é necessário que um negócio jurídico oneroso ocorra e implique na transferência de propriedade de um bem tido por mercadoria, em direção ao consumidor final, não se fala em taxação na inexistência dessa transferência.
Não se pode olvidar que quando produzimos a nossa própria energia injetamos na rede “kWh” e não “R$”.
A rede da concessionária serve como uma “bateria”, apenas para armazenar a energia produzida e esse armazenamento é dado como um empréstimo a título gratuito de coisa fungível, ou seja, ao injetarmos energia na rede estamos gerando um “crédito em kWh” e esse crédito em kWh é abatido na conta de energia também em kWh e não em reais, logo, não há um negócio jurídico oneroso nessa relação, não existe nesse contexto fato gerador de ICMS, logo não existe legalidade para a aplicação do referido imposto (Princípio da legalidade, art. 150, I, CF).
Este também é o entendimento do parecer n.º 0108/2012/PGE-ANEEL/PGF/AGU elaborado pela Advocacia Geral da União:
(…) Pela descrição contida na consulta acima, podemos resumir a relação entre o consumidor e a distribuidora como uma transferência de kWh pra a distribuidora quando a quantidade de energia elétrica gerada pelo consumidor for superior ao consumo, criando obrigação para a distribuidora consistente em devolver esta mesma quantidade de kWh quando a geração distribuída for inferior à carga do consumidor. Em virtude do ineditismo da proposta da ANEEL, este tipo de relação jurídica não se encaixa perfeitamente em nenhum contrato. (…) . Observe- se que na compra e venda existe a transferência do objeto do contrato em troca de dinheiro, o que não ocorre no presente caso em que a distribuidora recebe e devolve a mesma quantidade de energia elétrica (…).
Assim, é evidente que, algo que não é tido como mercadoria, que não possui valoração econômica, que não há transferência de titularidade não pode ser considerado como fato gerador de ICMS, sendo indevida a sua aplicação.
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Fontes
[1] RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 482, DE 17 DE ABRIL DE 2012. Disponível em: <https://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren2012482.pdf>. Acesso em: 05 de junho de 2021.
[2] RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 687, DE 24 DE NOVEMBRO DE 2015. Disponível em: <https://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren2015687.pdf>. Acesso em: 05 de junho de 2021.
[3] CONVÊNIO ICMS 16, DE 22 DE ABRIL DE 2015. Disponível em: <https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2015/CV016_15>. Acesso em: 05 de junho de 2021.
[4] LEI COMPLEMENTAR Nº 631, DE 31 DE JULHO DE 2019. Disponível em: <https://app1.sefaz.mt.gov.br/0425762E005567C5/9733A1D3F5BB1AB384256710004D4754/5631FD07CED41894842584490048FC5A>. Acesso em: 05 de junho de 2021.
[5] ABSOLAR. SETOR SOLAR FOTOVOLTAICO VAI GERAR 672 MIL EMPREGOS COM MANUTENÇÃO DO MARCO REGULATÓRIO. Disponível em: <https://www.absolar.org.br/deixeasolarcrescer/setor-solar-fotovoltaico-vai-gerar-672-mil-empregos-com-manutencao-do-marco-regulatorio/>. Acesso em: 05 de junho de 2021.
[6] BRASIL. Constituição Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 05 de junho de 2021.